Por J. R. GUZZO
Velhos marinheiros dos sete mares contam até
hoje, geralmente em voz baixa, a história do Flying Dutchman. Não é
uma história confortável. O Flying Dutchman, ou Holandês Voador,
levantou âncora das docas de Amsterdã em 1751, rumo a Java, e
depois de uma tormenta no Cabo da Boa Esperança nunca mais foi
visto; naufrágio com perda total da carga e da tripulação,
publicou-se nos boletins marítimos da época. O grande problema é
que, alguns anos depois, o navio holandês foi visto outra vez,
velejando a todo o pano, o leme firme, como se estivesse rumando para
um lugar preciso, e com a mais perfeita ordem no tombadilho; não
era, de jeito nenhum, um barco que tinha afundado e depois, por algum
fenômeno natural, voltado à tona. Outro problema, já bem maior, é
que não havia nenhum ser vivo (ou morto) ali dentro. Os tripulantes
do barco que tinha feito a descoberta subiram a bordo e minutos
depois, aterrorizados, chisparam de volta a seu navio e sumiram no
horizonte. Desde então a lenda insiste que o Flying Dutchman
continua aparecendo nos oceanos, sempre em noites de tempestade; é a
famosa “nau sem rumo”. Foi cometida a bordo, explicam os velhos
marujos, alguma abominação prodigiosa, tão horrível que nem o
demônio tem coragem de tocar no assunto. Tudo o que se sabe é que o
navio foi amaldiçoado ─ e a alma de seus tripulantes condenada a
navegar eternamente pelo mar sem fim.
E se em lugar de Flying
Dutchman falassem de “um país chamado Brasil”? Em 1º de janeiro
de 2003, sob o comando do almirante de esquadra Lula da Silva, ele
levantou ferros do Lago Paranoá falando em vencer mares nunca dantes
navegados e em edificar um novo reino social. Hoje, onze anos após a
partida e já sob o comando da imediata Dilma Rousseff, a nau
continua a procurar o reino que tinha prometido. Ao contrário do
barco holandês, o navio brasiliense está abarrotado de gente; só
de ministros são quase quarenta, e contando os subs, mais os subs
dos subs, a coisa vai para a faixa dos milhares de tripulantes. Mas
está na cara que os fantasmas do Flying Dutchman levam o seu barco
muito melhor que os humanos de Dilma; pelo menos sabem o que estão
fazendo.
Já o nosso navio ─ bem, é certo que algo deu
fabulosamente errado com ele. Não navega para lugar nenhum. A
tripulação não sabe distinguir proa de popa, e acha que o
contrário de bombordo é mau bordo. A nau não perdeu o rumo ─ na
verdade, nunca chegou a saber que rumo era esse. Como poderia saber
alguma coisa, se a esta altura da viagem o presidente do Senado,
Renan Calheiros, ainda requisita um avião militar para levá-lo de
Brasília ao Recife, onde foi implantar 10 000 fios de cabelo numa
clínica para carecas? O problema, é óbvio, não está com Renan;
ele é assim mesmo. O problema é de quem manda nos aviões ─ a
cadeia de comando da Aeronáutica, que só em 2013 já deixou o
senador lhe passar a perna duas vezes.
Nesta última, foi ao extremo de soltar uma nota
oficial dizendo que não iria avaliar “o mérito” da viagem, e
que sua função se limita a fornecer “a aeronave” solicitada.
Como assim? Se os senhores brigadeiros não avaliam o mérito ─ e a
legalidade ─ de seus próprios atos, que raio estão fazendo nos
seus postos? Estamos falando da Força Aérea Brasileira, santo Deus.
A lei diz que os aviões da FAB só podem ser utilizados por
autoridades em atos de serviço, questões de segurança e emergência
médica. Em qual caso se encaixariam, aí, os 10 000 fios de cabelo
do senador?
A lei diz também que desrespeitar essa norma é
“infração administrativa grave”, passível de punições “civis
e penais”. O comandante da FAB que serviu de piloto particular para
Renan poderia perfeitamente ter pedido ao senador, com toda a
educação, que lhe fizesse uma curta descrição por escrito,
assinada embaixo, contando que serviço iria fazer no Recife ─
“mera formalidade, doutor, só isso””. Por que não agiu assim?
Porque tem certeza, como toda a tripulação, de que está numa nau
sem rumo onde cumprir a regra só dá confusão.
O navio Brasil está precisando de muita coisa.
Uma delas é um oficial macho, que tenha entre os seus valores a
decência comum, e que um belo dia diga algo assim: “Sinto muito,
Excelência, mas a lei me impede de atender à sua solicitação”.
Iríamos ver, aí, quem entre os seus superiores hierárquicos teria
a coragem de prendê-lo por “insubordinação”, enquanto Sua
Excelência ficaria livre, contando vantagem do tipo “comigo
ninguém brinca”. Nesse dia abrirá falência o Táxi Aéreo FAB ─
e nosso navio, talvez, comece a encontrar seu rumo.
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