J.R.Guzzo
Num tempo em que princípios e
integridade são conceitos em extinção no meio político, é hora de lembrar do
legado do ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchil.
Foram apenas quatro palavras
ditas em inglês, há mais de 70 anos, na Câmara dos Comuns do Parlamento
britânico; desde então, fazem parte da linguagem mundial da decência do ser
humano. São palavras que não vão morrer nunca. Elas resumem, com perfeição, até
aonde pode chegar a coragem pessoal de um líder político, sua recusa em agir
contra as próprias convicções e uma determinação absoluta para jogar tudo, mas
tudo mesmo, na defesa de um valor moral. "We shall never surrender",
disse o primeiro-ministro Winston Churchill em 4 de junho de 1940, menos de um
mês depois de assumir o cargo —10 de maio, justamente o dia em que a Alemanha
de Adolf Hitler tinha invadido, e rapidamente derrotado, a França, completando
na prática a ocupação militar da Europa inteira. A Inglaterra, nesse momento,
estava totalmente isolada. Não tinha nenhum aliado; os Estados Unidos só
entrariam na guerra 18 meses depois. Seus recursos militares eram imensamente
inferiores aos da Alemanha. Os poucos países não ocupados da Europa, como Espanha,
Portugal ou Suécia, eram amigos íntimos dos nazistas. A Inglaterra não tinha
meios eficazes de se defender e muito menos de atacar. Um
"entendimento" com Hitler, "costurado" por alguma grande
obra de "engenharia política", estava na mente e na boca dos
profissionais — isso que se chama no Brasil de "gente do ramo". Foi
essa a hora que Churchill escolheu para informar à Alemanha e ao mundo:
"Nós não vamos nos render nunca".
Não era um discurso. Não
era um anúncio de obras do PAC nem do Brasil Carinhoso. Não era palavrório
demagógico, irado e grosseiro contra as elites. Não era um truque de oratória
nem uma frase escrita por seu diretor de relações públicas. Não era uma ameaça.
Era apenas o aviso de um fato concreto: a Inglaterra, pura e simplesmente, não
iria se render. No caso, o que Churchill acabara de fazer era assumir um
compromisso, e o aval de que ele seria 100% cumprido estava nos motivos reais
que o levaram a assumi-lo — as noções de "valor" ou
"princípio". Quando uma e outra existem de verdade num pronunciamento
público, é bom levar a sério o que está sendo dito — os atos prometidos ali vão
realmente acontecer, pois são o resultado de uma decisão que não vai mudar.
Dava para suspeitar que Churchill, na hora mais dramática de seu país, tinha
optado sem a menor hesitação por colocar valores acima de habilidades ou
conveniências políticas. Três dias depois de assumir seu cargo, logo no
primeiro discurso que fez, já começou com tudo: "Não tenho nada a oferecer senão sangue,
trabalho, lágrimas e suor" (trecho normalmente citado como "sangue,
suor e lágrimas"). Quem tem a coragem de começar um governo dizendo uma
coisa dessas? Não, com certeza, esses pigmeus que passam hoje por
"líderes" dotados de superior "faro político" ou outra
bobagem qualquer saída do mesmo angu. Os alemães não acreditaram no discurso de
Churchill. Cinco anos depois, seu país estava reduzido a ruínas. É no que
acabou dando essa história de tomar uma decisão motivada por valores.
"Ora (direis), ouvir
Churchill! E em pleno ano de 2013? Certo perdeste o senso", poderia dizer
Olavo Bilac se ainda estivesse vivo e calhasse de ler este artigo. Mas, da
mesma forma que em seu poema faz todo o sentido ouvir estrelas, também é
perfeitamente lógico pensar em 2013 o que Churchill falou em 1940. Desde que
foram ditas nos Comuns, suas palavras jamais deixaram de ser atuais, e
continuarão assim para sempre; fazem parte do patrimônio universal da
humanidade, como as pirâmides do Egito ou o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos,
em Congonhas do Campo. Há momentos, porém, que parecem pedir mais do que em
quaisquer outros a presença de valores na vida política. Quanto a isso vivemos,
hoje, o "nada absoluto" de que nos falam os metafísicos. Qual seria,
por exemplo, o grande princípio filosófico ou moral de Barack Obama, presidente
do maior país do mundo? Quem é capaz de citar uma única convicção verdadeira de
Angela Merkel, regularmente citada como a mais firme "liderança" da
Europa? Existiria algum remoto vestígio da noção de valor nas ações do
presidente Vladimir Putin? Não vale, aí. ficar falando de planos de assistência
médica ou apoio ao casamento gay, de firmeza no combate à inflação ou valentia
no rigor fiscal. A questão é saber, nessa gente toda, quem estaria disposto a
arriscar a própria vida na defesa de uma convicção moral, na recusa em aceitar
o mal no lugar do bem ou na intransigência total em favor da integridade e
contra a safadeza. E isso, apenas — é o que Churchill fez e o que qualquer
pessoa pode fazer, na guerra ou na paz, se colocar os valores da decência comum
como mandamento número 1 de seus atos.
Se o mundo em geral está
assim, imagine onde fomos amarrar nosso burro aqui no Brasil. Num artigo
recente em sua coluna quinzenal na revista VEJA, o jornalista Roberto Pompeu de
Toledo descreveu o universo político brasileiro como um deserto sem fim, onde é
impossível a existência de qualquer forma de vida — ou, melhor dizendo,
qualquer forma de vida pública capaz de ter um mínimo de utilidade para o país
e para sua população. O ovo da serpente é que não existe política no Brasil,
mas, sim, um "conceito de política", peculiar à nossa terra e à nossa
gente; esse "conceito", escreve Pompeu, nega a possibilidade de uma
vida pública em que os embates envolvam a diferença de ideias, programas ou
modelos propostos para a gerência da educação, dos transportes ou seja lá o que
for. Tudo, absolutamente tudo, é feito na exclusiva defesa de interesses
particulares. Valores? Princípios? Integridade? Separar o certo do errado? Abolir
os acordos indecentes para obter apoio? Tomar alguma decisão, uma apenas,
motivada pela obediência a um mandamento moral? O "conceito de
política" no Brasil não apenas ignora essas coisas mas tem certeza de que
todas elas são estupidez em estado puro. A presidente da República pensa e age
assim; e, abaixo dela, todos vão exatamente pela mesma trilha. Há exceções, é
claro — sempre há. Mas o que comanda de fato a vida pública brasileira é o
tráfico de emendas parlamentares, a compra e venda de cargos no governo e em
estatais, a criação de ministérios absurdos para atrair o apoio dos que vão
recebê-los, o comércio de minutos de propaganda obrigatória na TV, a submissão
sem limites aos "índices de popularidade" e assim por diante.
FÁBRICA DE MINISTÉRIOS
Como é possível, por
exemplo, a presidente Dilma Rousseff nomear para o Ministério da Agricultura,
em sua última "reforma ministerial", um político ligado a um sinistro
matadouro clandestino em Minas Gerais? Justo para o Ministério da Agricultura?
Não haveria nenhum outro disponível para ele e seu partido? E não haveria, em
190 milhões de brasileiros, nenhum cidadão um pouquinho mais adequado para ser
o ministro da Agricultura do Brasil? Se fosse um caso isolado, ainda daria para
engolir. Infelizmente, como mostra a experiência, não há casos isolados nesse
tipo de decisão — muito menos depois de dez anos seguidos de aplicação do
"conceito de política" hoje em vigor no país. A presidente criou,
para contratar aliados, e só para isso, um Ministério da Micro e Pequena
Empresa. Será que estaria pensando em criar, mais adiante, um Ministério da
Média Empresa ou mesmo um Ministério da Grande Empresa? Criou um Ministério da
Aviação Civil. E por que não um da Marinha Civil? Marinheiro também é filho de
Deus — e, de mais a mais, já existe um Ministério da Pesca, cujo ministro
confessa que não sabe colocar um anzol na linha. O interesse do país, em todas
essas decisões, é zero. Só importa quem vai ganhar o quê e qual o potencial de
aproveitamento material dos cargos criados. O resultado, ao mesmo tempo, é
aquele sugerido pela aritmética elementar. Quanto mais
ministério e mais cargos —, tanto mais vai se roubar. Dilma
sabe disso melhor do que ninguém. Já teve de colocar no olho da rua, por
exposição indecente em público, uma dúzia de ministros e talvez centenas de
delinqüentes que instalou na máquina pública, inclusive seu braço direito,
secretária executiva e sucessora na Casa Civil, a inesquecível Erenice Guerra.
E claro, portanto, que sabe — só que não liga. Troca os que não dá para segurar
por farinha do mesmo saco, que só serve para assar um tipo de pão. A
conseqüência é o que está aí — um governo aberto ao primeiro batedor de
carteira que se apresentar como reforço para a "base aliada".
O buraco até que não seria tão
fundo se o "conceito de política" praticado pela presidente, pelo
copresidente Lula e por seus fiéis fosse o único problema. Mas não é. Onde
acaba essa tropa toda começa o resto do mundo político brasileiro — a oposição
e os que, pelo menos, não têm emprego doado pela gente que manda. De novo:
alguém conseguiria mencionar um, apenas um, pensamento legítimo do governador
Eduardo Campos, declarado pelos meios de comunicação como o "novo
fator" da vida pública nacional? E o senador Aécio Neves, então, escalado
para a posição de número 1 dos opositores — no que ele realmente acredita ou no
que se compromete de verdade, além de sua briga com o colega de partido e
ex-governador José Serra? E os que foram tocados para fora do PT por se
recusarem a roubar ou aceitar cambalachos políticos — o que mais têm em comum?
Não se sabe. A impressão é que os participantes da vida política brasileira e
Churchill vieram de planetas diferentes. Mas é só impressão: vieram do mesmo, e
o que os separa de forma tão espetacular é algo que costumava se chamar, em
português comum, "vergonha na cara". Trata-se de uma opção de vida. E
adotada por pessoas capazes de sentir indignação moral diante de atos
repulsivos para a própria consciência. E sacrificar as circunstâncias do
momento, sempre, em favor de suas convicções reais. E a intransigência contra
qualquer ação que seus valores não aceitem. E a recusa em aprovar
entendimentos, acordos ou situações em que haja injustiça indiscutível. E, em
suma, nunca ser surdo para a voz da consciência nem cego para as conseqüências
de seus atos. Na política, enfim, significa a capacidade de ver que os governos
só fazem sentido se prestarem serviços aos governados, colocarem-se
sinceramente como servidores do público e agirem o tempo todo para sustentar
direitos legítimos e impedir a vitória da injustiça.
CERTEZAS MORAIS
Não existe rigorosamente
nada, aí, que só um homem como Churchill pudesse fazer ou que só a sua época
permitisse fazer — é uma postura aberta a qualquer um, em qualquer tempo. Na
verdade, Churchill não era um tipo de político excepcional, privativo das zonas
temperadas e pertencente a uma espécie que não sobrevive nos trópicos. Só
chegou ao cargo de primeiro-ministro aos 66 anos de idade. Viveu, antes disso,
no entra e sai do governo, como dezenas de outros na Inglaterra de sua época, e
chegou a ser demitido de um posto ministerial sob a acusação de incompetência.
Tinha problemas sérios com o alcoolismo, uma vida pessoal conturbada e um
notável talento para construir inimizades. Seu triunfo foi o conjunto de
certezas sobre o que pensava e o que devia fazer. Não se trata, por exemplo, de
certezas como as do ex-presidente Lula — que acredita ser um equivalente de
Abraham Lincoln por causa da quantidade de críticas que recebe na imprensa — ou
as da presidente Dilma, para quem a queda de raios não tem nada a ver com as
quedas de energia elétrica. Trata-se de certezas morais. No caso de Churchill,
ele tinha certeza de que jamais, em caso algum, aceitaria que seu país fosse
ocupado por tropa estrangeira, que os ingleses tivessem de aprender alemão ou
que a Gestapo tomasse prédios nas cidades inglesas para instalar neles seus
centros de interrogatório e tortura. Simplesmente não poderia admitir, como
afirmou em seu discurso, a presença do "odioso regime nazista" na
Inglaterra. Estava falando de valores, que não poderiam ser mudados ou
negociados — e é disso, precisamente, que vem a fé extraordinária que
demonstrou nas próprias palavras.
"Nós lutaremos na
França, nós lutaremos nos mares e oceanos, nós defenderemos nossa ilha, custe o
que custar", disse ele, nas frases que antecederam as suas quatro palavras
imortais. "Nós vamos lutar nas praias, nos pontos de desembarque, nos
campos e nas ruas; nós lutaremos nas colinas. We shall never surrender".
Ditas essas palavras, Churchill não fugiu; não foi se exilar no Canadá ou na
Austrália. Ficou em Londres, no seu posto, e correu o mesmo risco de morrer nos
selvagens bombardeios nazistas contra as cidades inglesas que corriam todos os
cidadãos de seu país. Não quis discutir pontos de doutrina jurídica com os
pares, na época, do ministro Marco Aurélio de Mello. Não queria saber se o
Ibope ia aumentar ou baixar seus índices de popularidade. Nunca pensou nas
próximas eleições. Apenas considerou, como a primeira-minista Margaret Thatcher
faria 42 anos depois na invasão das Malvinas pela Argentina, que a guerra
declarada pela Alemanha era algo errado. Se era errado, não podia ser aceito.
Se não podia ser aceito, tinha de ser combatido. O que impede, hoje, os homens
públicos brasileiros de pensar assim? Nada. Por que não se comportam como
homens que têm valores? Porque não querem. A presidente da República e toda a
classe política do Brasil não precisam procurar valores em figuras históricas,
ou em outras eras, ou em outros continentes. Têm à sua volta dezenas de milhões
de brasileiros que passam a vida inteira sem tirar para si um único centavo que
não seja honestamente seu. Recusam-se a viver na criminalidade; preferem
trabalhar duro a cada dia, por salários em geral modestíssimos, a desrespeitar
a lei. Sustentam, com esforços muitas vezes heroicos, sua família. Vivem em
silêncio. São exemplos perfeitos dos valores e princípios que matam de rir
todos os devotos do "conceito de política" que comanda o Brasil de hoje.
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Revista Exame 13/05/2013