De superpotência
a superpoder
Por Marcos
Troyjo
A intervenção russa na Ucrânia mexeu com a memória afetiva. Muitos
ensaiaram identificar na aventura de Putin a volta do sistema bipolar.
Para haver Guerra Fria, contudo, precisamos de embate
ideológico. Onde enxergar distintas visões de mundo a partir do jogo de
interesses na Crimeia?
É fato que George Kennan, diplomata americano na capital
russa nos anos 1940, argumentava que a cooperação socialista não serviria como
bússola para o comportamento internacional dos soviéticos.
Os inquilinos vermelhos do Kremlin reproduziriam a
mentalidade de seus antecessores czaristas: decorariam a imensa fronteira russa
com “estados-satélites” e “esferas de influência”.
Ainda assim, apesar de toda aridez geopolítica, a divisão
Leste/Oeste era também um conflito de ideias, de diferentes concepções de produção,
democracia e liberdades individuais.
Por isso Churchill, ao denunciar em 1947 que “uma Cortina de
Ferro descera sobre a Europa”, ajudava a inventar a Guerra Fria. Mesmo
disputando 0 mais realista dos jogos, o Alto Politburo instruía-se de uma visão
ideológico do mundo e para o mundo.
Para o Ocidente, tratava-se de “conter” a expansão
soviética. Para os comunistas, ampliar cooperação com insurreições à esquerda em
qualquer parte do planeta e aguardar o colapso inevitável do capitalismo.
Para “não-alinhados”, era oscilar pendularmente em busca de
recompensas pontuais. Conflitos em países de pouca relevância econômica, como
Cuba, Angola ou Vietnã, adquiriam dimensão global.
No Ocidente, a Guerra Fria gerou sovietólogos, “Doutrina de
Contenção”, “Teoria do Dominó”, e complexa rede de diplomacia, defesa e
espionagem – além da própria OTAN. Rastro de desemprego e irrelevância para uma
série de profissionais e instituições seguiu-se ao esgotamento do conflito
bipolar.
Já o fim do comunismo como vetor global desferiu, sobretudo
nos russos, golpe em sua vaidade e sentido de propósito. Havia um sentimento de
pertença repleto de significado: a certeza de estar do lado certo da História. O
próprio Putin referiu-se ao esfacelamento da União Soviética como “maior
catástrofe geopolítica do século 20”.
Hoje, na crise ucraniana, não há embate entre ideologias – e
sem elas, a Guerra Fria não volta mais. A investida de Putin na Crimeia não é
prelúdio de ingerências na América Latina, África ou Sudeste Asiático.
A presente crise na Europa Oriental não confronta portanto distintas
visões de mundo, apenas diferentes interesses nacionais definidos em termos de
poder. Quando o G7 ameaça Moscou com sanções, não o faz em antítese à
ideologia, mas ao poderio russo.
Por isso, vozes do realismo político, como as de Zbigniew Brzezinski e Henry Kissinger, têm soado tão forte na interpretação da atual crise. O poder,
enfim, não acabou.
A Rússia, sem projeto global, economia dinâmica ou discurso
ideológico, seguramente não é mais uma superpotência. No entanto, suas robustas
forças convencionais e pesado arsenal nuclear ainda fazem dela um superpoder.
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