sexta-feira, 14 de março de 2014

De superpotência a superpoder

De superpotência a superpoder 

Por Marcos Troyjo


A intervenção russa na Ucrânia mexeu com a memória afetiva. Muitos ensaiaram identificar na aventura de Putin a volta do sistema bipolar.

Para haver Guerra Fria, contudo, precisamos de embate ideológico. Onde enxergar distintas visões de mundo a partir do jogo de interesses na Crimeia?  

É fato que George Kennan, diplomata americano na capital russa nos anos 1940, argumentava que a cooperação socialista não serviria como bússola para o comportamento internacional dos soviéticos.

Os inquilinos vermelhos do Kremlin reproduziriam a mentalidade de seus antecessores czaristas: decorariam a imensa fronteira russa com “estados-satélites” e “esferas de influência”.

Ainda assim, apesar de toda aridez geopolítica, a divisão Leste/Oeste era também um conflito de ideias, de diferentes concepções de produção, democracia e liberdades individuais.

Por isso Churchill, ao denunciar em 1947 que “uma Cortina de Ferro descera sobre a Europa”, ajudava a inventar a Guerra Fria. Mesmo disputando 0 mais realista dos jogos, o Alto Politburo instruía-se de uma visão ideológico do mundo e para o mundo.

Para o Ocidente, tratava-se de “conter” a expansão soviética. Para os comunistas, ampliar cooperação com insurreições à esquerda em qualquer parte do planeta e aguardar o colapso inevitável do capitalismo.

Para “não-alinhados”, era oscilar pendularmente em busca de recompensas pontuais. Conflitos em países de pouca relevância econômica, como Cuba, Angola ou Vietnã, adquiriam dimensão global.  

No Ocidente, a Guerra Fria gerou sovietólogos, “Doutrina de Contenção”, “Teoria do Dominó”, e complexa rede de diplomacia, defesa e espionagem – além da própria OTAN. Rastro de desemprego e irrelevância para uma série de profissionais e instituições seguiu-se ao esgotamento do conflito bipolar.

Já o fim do comunismo como vetor global desferiu, sobretudo nos russos, golpe em sua vaidade e sentido de propósito. Havia um sentimento de pertença repleto de significado: a certeza de estar do lado certo da História. O próprio Putin referiu-se ao esfacelamento da União Soviética como “maior catástrofe geopolítica do século 20”.

Hoje, na crise ucraniana, não há embate entre ideologias – e sem elas, a Guerra Fria não volta mais. A investida de Putin na Crimeia não é prelúdio de ingerências na América Latina, África ou Sudeste Asiático.

A presente crise na Europa Oriental não confronta portanto distintas visões de mundo, apenas diferentes interesses nacionais definidos em termos de poder. Quando o G7 ameaça Moscou com sanções, não o faz em antítese à ideologia, mas ao poderio russo.

Por isso, vozes do realismo político, como as de Zbigniew Brzezinski e Henry Kissinger, têm soado tão forte na interpretação da atual crise. O poder, enfim, não acabou.  

Rússia, sem projeto global, economia dinâmica ou discurso ideológico, seguramente não é mais uma superpotência. No entanto, suas robustas forças convencionais e pesado arsenal nuclear ainda fazem dela um superpoder.


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